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  • Foto do escritorDyene Galantini

Não teve presente de Natal

Puxa, que ano incrível! Só tenho a agradecer.


Logo em janeiro recebo a notícia de minha promoção para o cargo dos meus sonhos: uma função de diretoria global que venho aguardando desde 2015 e sobre a qual já tinha perdido as esperanças.

Através dela, pude conhecer culturas diferentes da nossa como a chinesa e japonesa e ampliar meus conhecimentos interpessoais permeados pelo viés da liderança servidora, linha que sigo.


Em março tirei férias e tive oportunidade de conhecer o arquipélago de Galápagos e ficar mesmerizada pela natureza ainda intocada pelo homem voraz. Mergulhei com tubarões, uma linda espécie ainda da época dos dinossauros que vive na Terra há 300 milhões de anos e cuja população já foi 90% dizimada por nós, homens.

Também tive a oportunidade de compreender a evolução das espécies com um olhar darwiniano, através de seu centro de pesquisas. Vi tartarugas gigantes, iguanas marinhas, boobies de pata azul, flamingos e outros lindos pássaros. Além de tubarões, mergulhei de cilindro com focas, pinguins e arraias num mar cristalino.


Em maio, nasceu minha sobrinha e com ela renovei a imensa alegria de ser tia. Ainda me surpreendo e me emociono com o milagre de uma vida. Ter filhos não deveria ser algo automatizado, do tipo: casei e terei filhos. Trazer um filho para o mundo requer profunda análise crítica e noção de responsabilidade e compromisso. Não é para todos. E ver minha sobrinha, tão querida, nascer num lar repleto de amor me deixa muito feliz e realizada.


Em julho joguei tirei uns dias de folga e fui ver meus sobrinhos no Maranhão, que passariam uma curta estadia no Brasil. Todos os dias, deitava-me com um dos meus sobrinhos na rede e conversávamos sobre temas relevantes à cada um. Ser tia é o meu papel preferido.


Em agosto fui para a Argentina e tive a oportunidade de receber CEOs de grandes empresas, secretários de energia do governo e até um ex-embaixador em eventos sob minha responsabilidade. Meu time extraordinário trabalhou meses para fazer um evento de curta duração com o intuito de excelência. E conseguimos.


Ainda em agosto, fui para o México e me desafiei fazendo uma apresentação em espanhol para um público diferenciado de pesquisadores e até um vice-presidente sênior. Um verdadeiro desafio para quem se sente muito insegura falando essa língua. Não foi perfeito, mas me entenderam. Uma das chaves do sucesso é ir com medo mesmo. A sensação é de descer uma montanha russa sem cinto de segurança. Apavorante. Mas no final, a sensação de superação é belíssima.


Em outubro viajei para Houston e como um presente de Deus, o aniversário de 5 anos de minha sobrinha caiu na mesma semana em que uma reunião. Pela primeira vez, pude participar de seu aniversário e celebrar em família essa data tão importante. Entre super-heróis, dragões, dinossauros e guepardos, recebi e dei muito carinho.


No final de outubro, comecei a me sentir lenta e cismei que estava sendo dopada pelos meus remédios. Irresponsavelmente, por conta própria, parei meus remédios da manhã: antidepressivo e estabilizador de humor. Para racionalizar, criei um discurso interno que estava "esquecendo". Dessa forma, evitaria meu próprio julgamento rígido.


No início foi excelente: a sensação de clareza era incrível. Meu cérebro operava com uma maior rapidez e tinha mais facilidade de fazer conexões cognitivas: imagine que você tem poucas peças do quebra cabeça e mesmo assim consegue ver nitidamente toda a imagem. Além disso, a rapidez para desenvolver tarefas aumentava. E, junto com ela, a necessidade de mais tarefas. Um ciclo interminável.


E, nesse ritmo, continuei pelos próximos meses.


"Tudo o que sobe tem que descer" – esta é uma frase que me acompanha há anos e assim foi.

Caí. Meu ritmo desacelerou e deu lugar a uma grande letargia e falta de vontade de fazer as coisas que apreciava. Uma lentidão e uma vontade de dormir em horários impróprios. A luta não adiantava e meu corpo não me respondia. Não estava entendendo o que era.


Exaustão? Depressão? Burnout? Cansaço? Para quem passou quase 15 anos pesquisando sobre transtorno bipolar, a sensação de impotência era arrebatante. E a culpa por um dia ter controlado a doença, mas possibilitar que as coisas voltassem como eram antes.



Mea culpa.


Meus sintomas começaram a ficar perceptíveis e uma colega de trabalho perguntou se eu estava bem. Não, não estava. “Você já falou com sua médica?”, perguntou. Caramba! O óbvio é sempre esquecido. Nem me passou pela cabeça que poderia pedir ajuda!

Na mesma hora liguei e, por sorte, ela tinha horário no mesmo dia. Cancelei minhas reuniões e fui. O diagnóstico foi preciso: “você está sub-medicada. Sua dose já era mínima e você reduziu mais”, disse minha médica sem me julgar. A alteração foi passar meus remédios da manhã para a noite para ver se não sentiria sono durante o dia.

Funcionou por algumas semanas.


Até que no dia 22 de dezembro (obrigada aplicativo Clue, por me lembrar), véspera da minha menstruação, me senti mais agitada que o normal. Época de fim de ano, tentei arduamente trabalhar, mas ninguém me respondia. Mensagens de "fora do escritório" povoavam minha caixa de e-mail e começou a me dar uma imensa agonia.


No dia 23, notando minha agitação, meu marido disse que era final de ano e que eu deveria descansar. Passamos o dia inteiro em casa assistindo séries. Sonho para uns, verdadeiro desespero para mim. Não tinha estímulo intelectual, não tinha desafio, não tinha raciocínio.

Era uma atividade passiva.


No dia 24 fui à terapeuta. Por alguma razão, defesa talvez, não consegui elaborar o que estava passando comigo. Falei sobre outros temas. À tarde, meu cérebro sentiu uma necessidade extrema para estudar e fiz um curso de produtividade utilizando as ferramentas do Microsoft Office. Uma felicidade tomou conta de mim e consegui automatizar um relatório que fazia em 40 minutos manualmente, agora posso fazê-lo automatizado em 5, com redução de erros e aumento de eficiência. Vivo para isso: minha mente roda em um loop de melhoria contínua, começou com a vida profissional e passou para a vida pessoal. Tento esconder, às vezes sem sucesso.


Muitas das vezes me frustro, mas fecho os olhos e lembro que frustração faz parte da vida adulta e que dominá-la é uma vantagem competitiva. Sonho acordada em gerenciar uma repartição pública, dominada por ineficiências e falta de processos. Gosto de melhorar, transformar, e quando não consigo enlouqueço imperceptivelmente.


Caramba! É Natal. Fui displicente: não fiz cartões, não liguei, não postei. Não nada. Só o mínimo necessário. Estava vazia numa festa tão cheia de tudo.

Mas fui à confraternização em família. Se o maior presente de Natal que alguém pode dar é a presença, falhei. Não dei nada para ninguém, pois não estava lá. Meu corpo sim, minha presença não. Não teve presente de Natal. A sensação era que meu corpo flutuava e olhava as pessoas de outro lugar. Sabe relatos de vida pós morte? Bem assim. Não lembro de muitos detalhes do Natal. Só lembro que eu me esforçava para não gaguejar, pois meu pensamento estava muito mais rápido que a linguagem. Fiquei mais em silêncio pois apresentava sinais de irritabilidade.


Dormi antes da meia noite. Perguntaram se eu dormi bem, mas não sabia se sonhei que estava acordada ou se, acordada, achava que estava dormindo. Muito confusa essa sensação. Lembro-me de poucos detalhes do dia.

Quis ficar sozinha em casa, meu marido estava de plantão no hospital.


Em casa, agitada, como se estivesse numa competição onde minha vida dependesse disso, arrumo as coisas numa velocidade anormal. Tudo: dentro e fora dos armários. Foram 3 cestos de roupa para lavar, depois guardar. Limpar. Organizar. Essa é uma piada recorrente entre amigos mais próximos: "Dyene, quando você estiver assim vem para a minha casa" ou "queria ter essa sorte, sempre tenho preguiça para arrumar a casa", dizem. Porém, esse estado é diferente de escolher faxinar ou organizar uma casa. É pura agonia, é uma energia diferente. As coisas ficam vultuosas, como se não tivessem forma. É tudo muito rápido, parece que estou dentro de uma máquina de lavar roupa e não consigo sair.


Continuei por várias horas nesse estado até meu marido chegar dizendo: “é Natal! Vamos tomar um vinho e conversar sobre nosso dia". Era como se estivesse escutado um estalo que me tirou daquele estado e parei.

Sentei e fiquei quieta, já que minha mente estava um tumulto só. Imagine uma metrópole com vários cruzamentos com carros em alta velocidade buzinando. Era isso.


Quando olhei para a cozinha, vi a geladeira com objetos decorativos em cima. Algo tão simples e foi um dos momentos mais emocionantes do meu dia: poder enxergar a geladeira. As formas, os detalhes, a cor, as letras da marca, a silhueta. Sensação incrível... Minha mente voltou a ficar normal.


Meu marido perguntou o que eu estava olhando por tanto tempo e expliquei a ele sobre meu dia. Ele vai à sala e diz firmemente: “você liga para a sua psiquiatra ou eu ligo”. “Mas é Natal”, rebati, “não posso”. “Isso é emergência e ela vai te atender”, respondeu.

Bem melhor, enviei mensagem, avisando que já estava bem, mas que gostaria de conversar com ela. No dia seguinte, dei todo o panorama dos últimos dias e ela ajustou o antipsicótico.

“Antipsicótico? Você toma?”, perguntam-me os desavisados. Sim, e confesso que é um grande alívio.


Infelizmente, o cinema e a mídia irresponsável perpetuaram no inconsciente coletivo que psicose e homicídio caminham de mãos dadas, o que é um fato irreal. Artigos sérios publicados em revistas científicas de renome desmitificam esse fato. A psicose não tem a carga de periculosidade que a mídia veicula e que nossa sociedade absorve com tanta avidez. O maior perigo que ofereço é somente a mim.


Prefiro romantizar e materializar meu transtorno e traços psicóticos como um quadro de Van Gogh, mais especificamente o da Noite Estrelada, que demonstra os vultos e as alterações de cor. Especialistas do mundo inteiro afirmam que Van Gogh tinha transtorno bipolar e dia 30 de março, quando celebramos o dia Mundial do Transtorno Bipolar, também é o aniversário de Van Gogh.

Ver a geladeira como uma mistura de cores andando velozmente como Van Gogh via a noite estrelada é uma manifestação de psicose. Essa é uma imagem bem distante e muito mais poética do que a associação que fazem com o filme “Psicose”. Já está na hora de ressignificar e dar uma chance a quem não tem voz. Muitas vezes, pacientes deixam de tomar remédios importantes pois não querem ser rotulados de psicóticos. E aí pioram. Não está correto, é uma injustiça sem tamanho.


Dia 26 acordei bem melhor. E, ao tomar meus remédios corretamente, voltei a ser quem eu sempre fui. Preciso de ajustes finos, que vêm com o tempo. Ainda aproveitei o dia para cuidar da saúde física e fui à fisioterapia.


Lá, com o vai e vem do ultrassom na pele, lembrei o quanto é mais fácil verbalizar a dor física. "Tenha uma boa tarde e melhoras para você", diz o paciente que sai. Sem julgamentos, sem pré-conceitos. Afinal, dores corporais são aceitáveis, as da mente não.


No final da sessão, para a minha surpresa, ganhei um presente de Natal. Eu, que cheguei de mãos vazias e sem expectativas, saía com o carinho imenso de quem cuida das minhas dores físicas. Não tinha nada material para retribuir, apenas minha presença.


Natal virou sinônimo de stress, estacionamento lotado, trânsito infernal, desentendimentos por causa de política, exigências emocionais, gastos elevados e excessos. Não é coincidência que o nível de solicitações para entrega rápida do meu livro dispara. Perdemos a simplicidade de uma data nobre em que a presença deveria ser o foco. Seja ela do menino Jesus ou de familiares e amigos próximos.


Dia 28 me reaproximei da natureza: fiz uma trilha aqui no Rio de Janeiro e contemplei de cima a nossa linda cidade. Estava em paz e a sensação de gratidão me banhou como uma cachoeira. Sei que nem todos têm acesso a recursos que proporcionam o equilíbrio tão rapidamente. Entendo que isso seja uma raridade e privilégio, um verdadeiro prêmio lotérico.


E, dia 29, já em ritmo de ano novo e com todos os sintomas sob controle, relato mais esse episódio. Ele demonstra que a vida real não é tecida apenas por sorrisos nas redes sociais. Há obstáculos, quedas, dores e dificuldades, mas a jornada sempre vale a pena. Se você está passando por alguma dificuldade, respire fundo e deixe fluir. Quando se sentir forte, lute. Mas permita-se sentir... Sua presença é mais importante do que você imagina.


Feliz 2020 para todos nós.

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